quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Coração em preto, branco e azul


Duas paixões, momentos distintos, perspectivas diferentes, sentimentos complementares, causas de muitas emoções e lembranças. Assim resumo, de maneira breve, minhas expectativas para o confronto entre São Bento e Corinthians, hoje no CIC, às 21h45.

Presenciarei o embate ao vivo, com a certeza do coração a mil por hora. Afinal, receber o atual campeão brasileiro em casa, ambos invictos e lutando para manter a lideranças dos respectivos grupos parecia utópico para o Bentão em 2011...

Mais antiga, a paixão alvinegra possui profundas raízes na família. Não sei dizer onde, quando e por qual motivo começou a relação dos Castanho Vieira com a equipe fundada em São Paulo por operários da região do Bom Retiro, em 1910, sob a luz de um lampião, conquistou a Zona Leste paulistana e hoje tornou um gigante, com mais de 30 milhões de loucos torcedores, dono de todos os títulos possíveis em nível estadual, nacional e internacional, estrutura, patrimônio e marca entre as mais valiosas do mundo.

Entrada do Memorial Corinthians, na sede do clube, no Parque São Jorge
Sei apenas que esta história começou com meu avô João, quando o futebol era de fato o esporte do povo e a profissionalização ainda engatinhava. Neste contexto, somadas às condições financeiras, transporte e logística da época, sequer o Campeonato Brasileiro existia: a glória maior de uma equipe era ser campeã estadual. No caso do Timão, obviamente, do Campeonato Paulista.

A tradição começou com o Seu João e continuou pelas gerações seguintes, inclusive, por alguns dos que foram se incorporando à família ao longo dos anos. Hoje, aproximadamente 90% dos cerca 40 descendentes diretos carregam o DNA alvinegro, entre filhos, genros, noras, netos e bisnetos.

Minha influência veio antes mesmo de nascer, em 1983, quando meu pai me presenteou com uma camisa do Timão, com o número 8 do Dr. Sócrates, autografada pelos jogadores da histórica Democracia Corinthiana.

Taça do Paulistão 1983: bicampeonato da Democracia Corinthiana

Aliás, a camisa teve um fim tragicômico, mas é assunto para outro dia... Embora tenha vagas lembranças da conquista do Brasileiro de 1990, comecei a acompanhar futebol com mais afinco, paciência para 90 minutos de bola rolando e entender as regras e emoções do esporte nos anos seguintes.

Período em que o São Paulo, e depois o Palmeiras, conquistaram títulos atrás de títulos com timaços, enquanto o Corinthians sofria, com equipes raçudas, porém, medianas.

Mesmo assim, somada a alguma pressão externa, não teve jeito: o sangue alvinegro se manifestou, impregnando em todas as células.

Família comemorando a Libertadores 2012

Assim, o Corinthians se tornou responsável por algumas das maiores emoções que vivi nestes 33 anos, como torcedor e profundo conhecedor dos seus quase 106 anos de história. Lembranças que ficarão para sempre e se juntarão a outras que virão.

Como torcedor, vivenciei um período em que o futebol acompanhou a sociedade e sofreu várias mudanças, tanto para a melhor e quanto para a pior. Num cenário em que o profissionalismo e o poder financeiro passaram a fazer diferença, ser campeão estadual não é mais o suficiente: é preciso conquistar o Brasil, a América do Sul e o mundo.

Taças do Bi-Mundial, conquistadas em 2000 (esquerda) e 2012

Por outro lado, paixão alviceleste começou de forma diferente. Minha família não é originária de Sorocaba: somente poucos componentes se estabeleceram por aqui, a exemplo dos meus pais, a partir de 1984.

Enquanto criança apaixonada por esporte, gostava de frequentar jogos dos representantes sorocabanos, como as extintas equipes de basquete e vôlei feminino (lideradas, respectivamente, por Hortência, Janete e Marta e Ana Moser, Fernanda Venturini e Ana Paula), e também o São Bento, já nas divisões inferiores do futebol paulista.

Sabia muito pouco sobre a trajetória daquela equipe fundada em 1913, também por trabalhadores de classe sociais mais simples, que adotou o nome do padroeiro do Mosteiro que é marco inicial da história da cidade, cresceu em meio a operários e a colônia espanhola, conquistou toda Sorocaba, revelou jogadores que fizeram história no futebol brasileiro e internacional e chegou à elite do futebol em 1963, onde permaneceu por três décadas e impunha respeito aos grandes.

Comemorando aniversário da mãe com a camisa do Bentão (não me lembro o ano)

Apenas lembrando, comecei a acompanhar esporte no início da década de 1990, justamente no período em que no futebol a distância que já existia entre os clubes grandes e pequenos tornou-se um verdadeiro abismo. Infelizmente, a exemplo de muitas equipes do interior, o São Bento sofreu com gestões desastrosas, seguidos rebaixamentos, perda de prestígio, esvaziamento de categorias de bases, sucateamento de patrimônio, evaporação de recursos financeiros, oportunistas e aproveitadores de toda espécie, dentre outros males.

Mesmo assim, era um adolescente torcedor assíduo do time e frequentador eventual das arquibancadas do CIC mesmo sozinho, quando ia ao estádio de ônibus e me valia do benefício da meia-entrada. Torcia muito para a volta por cima do Azulão, embora encarasse o desafio como quase inatingível.

Minha relação com o Bentão se aprofundou mais em 2001. O ano em que me mudei para Bauru cursar a faculdade coincidiu com campanha do título Paulista da A3 e consequente acesso para a série A2. Boa parte dos meus fins de semana em Sorocaba foram dentro do CIC, o que fortaleceu minhas raízes e orgulho sorocabanos, demonstrados frequentemente ao andar com o manto alviceleste pelo campus da Unesp (só para ouvir perguntas e elogios sobre a camisa).

Camisa do título da A3 em 2001 (a foto é de 2012)

No ano em seguinte, em 2002, o clube sagrou-se campeão da Copa Federação, antigo nome da atual Copa Paulista, época em que a competição não dava vaga à Copa do Brasil). Estava na arquibanca superior do CIC, numa tarde de sábado de muita chuva e partida interrompida por quase uma hora.

Já em 2005, quando iniciei minha trajetória profissional no Diário de Sorocaba, o Bentão foi campeão da A2, quando presenciei sua volta à elite, numa final contra o Noroeste Infelizmente, o retorno durou apenas dois anos, pois o amadorismo, incompetência, desmandos, entre outros problemas, levaram a equipe de volta à A2 e, inacreditavelmente, à série A3 em 2011.

E na ocasião, situações vexatórias, como espalhar urnas para a torcida depositar donativos durante os jogos e peneiras nos Campeonatos Varzeanos para formar o elenco, nos desanimavam para valer: a situação tendia a piorar ainda mais. Até mesmo a sobrevivência do clube foi questionada.

Sorriso estampado na cara em 2014: o Bentão voltou!
(Foto: Alexandre Lombardi)

Entretanto, com muito trabalho, dedicação e empenho para equilibrar as finanças, montar equipes e estruturar o clube dentro da realidade possível, o fundo do poço permitiu ao Azulão se reerguer e resgatar autoestima do torcedor.

Minha presença no CIC então, de eventual, tornou-se obrigatória, ao aderir ao programa de sócio-torcedor e acompanhar mais de perto o dia-a-dia da equipe. Assim veio o título da A3 em 2013, ano do centenário, com gol aos 47’ do 2º tempo; e a campanha da A2 em 2014, quando a vaga parecia nos escapar entre os dedos, mas vitórias heroicas no CIC, Santo André e Catanduva nos levaram de volta à A1.

A boa fase e a persistência levaram pro estádio até quem nunca tinha ido...

Após um honrado 9º lugar em 2015, o Bentão vem surpreendendo ainda mais em 2016, pois é líder do Grupo A (supera o Santos em saldo de gols) e está invicto, com duas vitórias e três empates (incluindo aquele do polêmico jogo contra o Palmeiras, quando teve um gol injustamente anulado).

Assim, exponho os motivos pelos quais, embora jamais torcerei contra o Corinthians, hoje o lado azul e branco do meu coração falará mais alto: uma vitória do São Bento me fará muito mais feliz.

Pelas mudanças que o futebol brasileiro passou a partir dos anos 1990, os campeonatos estaduais foram gradativamente perdendo a importância para os grandes clubes. Cada vez mais, as competições são vistas como preparatórias para os torneios mais valorizados, como a Libertadores da América, Mundial de Clubes, Brasileiro e Copa do Brasil.

Palavras que descrevem o que é ser Corinthians

E desta forma o Corinthians encara o Paulistão 2016, tanto que o técnico Tite poupará boa parte dos titulares hoje. Afinal, ele mesmo sabe que uma derrota ou empate em Sorocaba não mudará em nada seus planos: pela distância técnica, financeira, estrutural e pelo esdrúxulo regulamento, o Corinthians se classificará para a próxima fase.

E mesmo que perca o título: continuará como maior campeão Paulista da história, com 27 taças. E quando a 28ª vier, será comemorada, porém, com significado muito diferente daquela de 1954, ano do 4º Centenário de São Paulo; do gol de Basílio em 1977, que libertou um grito preso na garganta há 23 anos; das duas conquistadas pela Democracia Corinthiana em 1982 e 83; do gol de canela de Viola em 1988; ou mesmo a de 1995, quando a cobrança de falta de Marcelinho e o chute de fora da área de Elivélton explodiram a Fiel no Estádio “Santa Cruz” e em todo Brasil.

Alguns dos que construíram uma centenária história de glórias

Para o São Bento, não: uma improvável vitória sobre o Todo Poderoso Timão, atual campeão Brasileiro, após 19 anos será um feito histórico. E poderá ter peso decisivo para a sonhada classificação à fase eliminatória do Paulista e, principalmente, à série D do Campeonato Brasileiro.

Um calendário anual é fundamental para o gradativo crescimento do Bentão, possibilitando um planejamento em longo prazo, montagem de elenco, atração de mais sócio-torcedores e patrocinadores, deixando para trás a deficitária Copa Paulista no segundo semestre e se reconquistando definitivamente seu espaço no futebol.

Eu no meio da nação são bentista: no interior, o futebol sobrevive sim!
  
(Foto: Jesus Vicente / EC São Bento)

Além do mais, vivemos um período de um futebol cada vez mais “gourmetizado”, em que padrões estéticos europeus são meramente reproduzidos sem o menor critério e discernimento, em detrimento às questões estruturais de fato relevantes.

Desta forma, muitos “especialistas” menosprezam as equipes do interior, defendendo o fim dos estaduais, como se fosse um passe de mágica para sanar todos os males do futebol brasileiro. Por isso, Bentão, vou torcer muito para que hoje você contrarie a lógica, vença e, assim como Mané Garrincha, drible e entorte a coluna destes que não sabem o que dizem...

Casagrande disputa a bola a num São Bento x  Corinthians
 na década de 1980: os bons tempos voltaram! 

2 comentários:

  1. Muito legal, colega, tá de parabéns! Me lembrei de um textão meu recente, em que relembro as minhas Copas do Mundo (aliás, quebrei em dois posts...rs). E como somos a minoria que curte um textão na Internet, te recomendo: https://medium.com/@obrunopessa/minhas-copas-do-mundo-1990-2006-cfef6f4ff802?source=your-stories
    abração e vai Bentão!

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    1. Valeu pelo prestígio, Bruno! Certeza, infelizmente, os curtidores de textões estão diminuindo, hehe... Vou ler depois com calma sim. Obrigado, abraço!

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